4.16.2009

Diarios de Motocicleta

Depois de ontem ter visto Che - O Argentino, de Steven Soderbergh e, em vésperas da estreia do filme de Walter Salles, Linha de Passe, decidi aproveitar-me da minha MEO vendo Diarios de Motocicleta - Diários de Che Guevara, uma longa-metragem deste último.
Razões do "concreto aproveitamento": primeiro, conhecer melhor o personagem histórico e icónico que foi Ernesto Guevara de la Serna, servindo tal película de ponto de partida zero para compreender as recentes obras cinematográficas de Soderbergh; segundo, para conhecer alguma da obra de Salles tendo em conta que, estou muito entusiasmado com a estreia de amanhã, afinal, é de certo modo um retrato de São Paulo. Adiante, deixemos as considerações acerca de Linha de Passe para mañana.
Diarios de Motocicleta (adopto o nome original do filme dada a infelicidade da tradução encontrada), é uma verdadeira epopeia contemporânea da imensidão e diversidade que ainda hoje é a América do Sul. Tendo por base Notas de Viage de Ernesto Che Guevara e Con el Che por Latina América de Alberto Granado, o filme narra a viagem que em 1952 (que durou nove meses) Ernesto e Alberto fizeram de mota, a pé e à boleia pela América Latina, conhecendo a Argentina, o Chile, o Perú, a Colômbia e a Venezuela, enfim, de Buenos Aires a Caracas, passando pelo deserto de Atacama ou ainda por Machu Picchu. Uma viagem que simboliza o "nascimento" do "Che" que inunda alguns adereços de moda numa qualquer banca de uma feira dos dias de hoje. Uma fita que mostra que aquilo que somos, pensamos, e que defendemos para a sociedade e para o mundo, não passa de um reflexo de todas as experiências de vida, mais até do que a própria educação que recebemos. Mais, somos também um produto de um certo contacto com o outro, mesmo até daqueles com quem apenas nos cruzamos.
Uma película carregada de metáforas, alegorismos e tanto simbolismo. Não são os diálogos (os quais, estritamente são simples e perfeitamente comuns) que enriquecem ou criam todo o idealismo deste filme, mas sim, as belíssimas imagens de uma parte da Terra mitificada pelo seu passado, pela sua história e, sobretudo, pelas suas gentes; bem como, pela forma meramente facial e de cruo aspecto com que os fenómenos da pobreza, da fome, da iliteracia e de algum não respeito pelos Direitos Humanos são abordados nas duas horas da realização de Salles. Aspectos simbólicos como a passagem (ao nível da montagem) de Machu Picchu para Lima, representando as alterações de paradigmas de dois tipos de civilização representados pelos referidos locais, são um exemplo da subtileza e genealidade da realização do brasileiro.
É ainda de notar a forma realística e fidedigna como Salles vai caracterizando o sul do continente americano e as suas populações, até mesmo as mais indígenas, como as dos Andes; ou ainda, algum retrato social do temperamento daquelas gentes, senão vejamos: quando Ernesto força a mulher do mecânico a beijá-lo e esta se recusa, logo toda a gente do "baile da aldeia" o tenta matar atirando-lhe garrafas de vinho quando o protagonista foge a correr.
Se por um lado, Salles usa e abusa de um movimento de câmara irrequieto e que vai acompanhando a jornada de Guevara e Granado como se nalguns momentos estivesse a coxear, por outro lado a abundância de cores quentes tranquilizam tudo o resto, enfim, como que servindo de contraste ao primeiro "tique" de realização, bem como, como um sinónimo de uma América Latina autêntica e transparente.
Com um exercício de montagem exemplar, além da exelente fotografia (em concreto as que embelezam a parte final da obra) a preto e branco, Salles junta ainda mais ingredientes a este filme, tornando-o muito bom.
Finalmente, a destacar a sublime interpretação de Gael García Bernal: comparado com Del Toro, García Bernal é a humanização de um personagem em contraponto com a rigidez/maquinização humana (se é que tal palavra se pode aplicar a um humano). (Acredito que, mais por culpa do próprio "Che" enquanto homem que era durante a Revolução Cubana, do que de Del Toro e da sua interpretação). Ele chora, ri, lê e cita Lorca e/ou Neruda, escreve, sente, apaixona-se, pensa, ultrapassa obstáculos, enfim, seria como qualquer outro não sentisse uma enorme vontade de mudar o mundo. García Bernal não interpreta um "Che" assassino, guerrilheiro, comunista ou algo do género, ele é tudo menos isso; ajuda os outros, tem sentido de justiça e igualdade, guia-se por valores nobres, enfim, parece actuar como um verdadeiro cristão. Com este "Che" qualquer um lhe faria vénia, contudo, não foi ainda desta que me convenceram a comprar uma icónica t-shirt com a sua cara numa onda pop. Fiquei sim, com uma enorme vontade de fazer uma road-trip de uma ponta a outra pela América do Sul acompanhado da fantástica banda sonora de Gustavo Santaolalla.
Diarios de Motocicleta foi Selecção Oficial do Festival de Cinema de Cannes em 2004.

Nota: 4

Sem comentários:

Enviar um comentário